terça-feira, 28 de julho de 2009

Relatos de um mochileiro solitário


A ausência neste espaço nos últimos tempos se justifica (dentre outros motivos, confesso) pelas férias deste jornalista em seu emprego oficial, o que o levou a embarcar pelas serras de Minas a pé e sozinho. Já dizia Guimarães Rosa que a "travessia é perigosa, mas é da vida. Sertão que se alteia e abaixa...". Minha mulher, por sua vez, também muito me alertou sobre os perigos de se embrenhar solitário mato afora, ainda mais fora da rota turística convencional da Serra do Cipó. Mas nem mesmo duas das mais importantes pessoas de minha vida me fizeram desistir da aventura.

Não que a intenção inicial tivesse sido essa: viajar sozinho a fim de conhecer a mim mesmo e encontrar o meu verdadeiro eu. Na verdade, nenhum dos costumeiros companheiros de travessia podia se aventurar comigo na ocasião; daí a ida solitário. Mas é fato que uma viagem sozinho, em especial, uma travessia, um acampamento, traz enriquecimentos e reflexões interessantes - mas esta, definitivamente, não é a pauta deste artigo.

Exageros e delírios à parte, minha mulher tinha razão quando me alertava sobre os perigos de se caminhar a pé, sozinho, na Serra. Deveras: o mochileiro deve redobrar a atenção quando só em uma travessia; qualquer acidente, pé quebrado, desidratação/insolação, picada de cobra podem lhe custar a vida quando não há alguém para lhe ajudar com os primeiros socorros, tampouco um hospital por perto. Portanto, nessas situações, vale a pena arriscar menos, evitar atalhos desconhecidos, matas fechadas, escaladas, etc.

Invariavelmente, o mochileiro terá também mais peso a carregar, pois não terá ninguém para compartilhar o peso de coisas indispensáveis para um acampamento, seja para uma, duas ou três pessoas - como barraca, fogareiro, panela. A dica nesses casos é evitar ao máximo levar supérfluos e coisas que podem ser compradas, se possível, em vilarejos próximos.

Acampamento, por si só, gera muito trabalho. Salvo os momentos de dedicada contemplação a cachoeiras, serras e afins, sempre há algo para se fazer - uma cebola para cortar, uma vasilha para lavar, um cigarro para enrolar. Até os hábitos de higiene pessoal geram muito mais esforços do que o normal. E, em uma travessia, soma-se o fato de que o acampamento deve ser levantado e desmontado diariamente.

Novamente, por não ter ninguém com quem dividir as tarefas, o mochileiro solitário trabalha à beça. Por isso, deve-se ter atenção redobrada para que as tarefas não impliquem em atrasos à caminhada, o que, em uma travessia, nunca é legal.

E, no mais, é só curtição. Certeza de um passeio mais contemplativo, introspectivo e com um maior sentimento de pertencimento ao meio.

Câncer no âmago

*arte: angela bonfante

Sabe-se aqui que, nestas terras,
flores não florescem mais.
Sabe-se que aqui, neste céu,
cores não colorem mais.
Aqui se sabe tudo. Aqui nada se sabe.

Conta-se que, noutros tempos,
as pessoas aqui eram melhores.
Conta-se que aqui, nos dias de hoje,
brigam para serem piores.

Ouve-se dizer que o dia nasce noite.
Vê-se acontecer palavra virar foice.
Ouve-se dizer que água é inflamável.
Vê-se a confusão entre o notável e o memorável.

Aqui se sabe tudo. Aqui nada se sabe.
Há quem reze pela sorte.
Há quem por ela pague.
Aqui se sabe nada. Aqui tudo não se sabe.

terça-feira, 21 de julho de 2009

Divagações de uma vida sem gosto

É engraçado. Quando as coisas dão errado, quando estou nervoso e com a cabeça borbulhando insultos cerebrais é que paro e respiro. Paro para pensar e respiro para não fenecer. A mania de analisar de dez em dez minutos as escolhas que faço parece que vai me acompanhar até a morte. Escolhas nós fazemos sem parar; e elas são boas, pois nos dão um caminho a seguir. O problema é que, mesmo aparentemente retilíneo, certos caminhos emanam insegurança. Ainda mais para mim, desconfiado que só vendo, tão azarado que nem a sorte resolve.

É impressionante como o fato de sempre ter que escolher entre uma coisa e outra me assombra. Não é possível que não haja paz. Será possível que não exista apenas uma única opção? Chego a pensar que o melhor seria assim. Talvez seja mais fácil não ter que escolher, pois já estou que não aguento mais essa onda liquefeita de instabilidade. Ainda mais que tudo o que eu escolho se mostra errado algum tempo depois. Então, que não tenha o que escolher. Ao menos me livro do risco de ter que escolher entre duas coisas que eu não gosto. Contudo, parece ser essa a sina dos desafortunados.

Me aporrinha a idéia de ficar parado e não andar, ou de andar e não sair do lugar. Me atormenta o fato de apenas almejar e não conseguir. Me incomoda a veracidade de sempre ir e não chegar. Me enche o saco estar sempre quase bom. Me entristece o fato de que o que eu tenho nunca me satisfaz. Talvez eu não seja suficientemente bom. Vai ver eu não mereça tanto.

Queria mesmo era fazer como o Luiz, nobre autor deste inescrupuloso espaço: sair de férias, colocar o mochilão nas costas e sair por aí andando, sem ter que escolher entre isso ou aquilo. Apenas existir, enquanto a morte não nos escolhe ou não se escolhe por morrer.

segunda-feira, 20 de julho de 2009

Tome tento

* a raduan nassar

Guardo uma certeza do mundo: a vida é bruta. Toma-se receio com ela ou esta o queima como uma desregulada torradeira no café da manhã. Uso “queima” como eufemismo, posto que a dor que se sente é tão imensa, desmedida, que não se encontra meios, métodos, para estancar tamanho infortúnio.

Dito isto, reservo as próximas linhas a você: impostora, covarde, mesquinha, ex-amor-da-minha-vida. Tomo posse de certas palavras intentando, provisória e inutilmente, reaver em mim os restos de minha construção, implodida por causas vindas de você Elisa.

1. Ex-querida, começo por avisá-la que suas recomendações não serão mais aceitas por mim, evitando assim, que manipule esse pedaço de carne com suas variações formidáveis de estruturar frases longuíssimas que, embora convincentes, não surtirão em mim o mesmo efeito retórico de outrora. Vacinei-me contra sua raiva.

2. Peço sigilo, não comentes nossa história com ninguém, não estabeleça comparações com suas amigas de relacionamentos passados, tendo em vista que, para mim, não houve relação alguma, a não ser sentimentos que já não sinto, vontades que não tenho, pingados por longas noites, dias, tardes de sexo que, ao final, tornaram-se burocráticas e com poucas novidades, o que guardo então em minha cabeça, se quer saber, são apenas alguns gemidos, bocas estranhas e comentários boçais que fazia e que, hoje, só me causam riso ao recordar.

3. A partir desse momento não conte mais comigo. E esse, acredito, deve ser o maior golpe para você. Não fará mais uso de sua ferramenta, eu, quando assim a buscar; não utilizará mais meu raciocínio, minhas palavras, meu falo, quando buscar porto seguro - sua nau naufragou. Busque tal conforto em outros espécimes, antigos casos que devem se sentir altivos e garbosos com os movimentos de seus quadris – e isto tenho que reconhecer – tão bem executados e que trarão às suas escutas, em troca, aquilo que deseja ouvir: que és linda, talentosa, independente, decidida, coerente, pragmática, inteligente, enfim, mentiras.

4. Ex-amiga, deu-me presentes, ornamentos, que não mais me causam gosto e, por isto mesmo, não serão devolvidos a você, já que tantas vezes foram comprados, bem sei, com a intenção maquiavélica de me conquistar. Mas não se preocupe, não desfilarei com tais peças. Irei queimá-las. Assim como o fez com minha auto-estima. E a alerto, vago ser, que um homem sem auto-estima é uma taça vazia, uma bandeira que tremula sem símbolo, ou uma carteira sem dinheiro, como você, exemplarmente, gostava de se referir analogamente às minhas parcas finanças que não conseguia sustentar por um único motivo consumista: você.

5. Não me esqueço das motivações que me causava ao dizer certas coisas que só posso classificar aqui como “coisas”, tamanho o desvario com que saltavam de sua boca carnuda e rosada. Apesar de sua reconhecida alfaiataria semântica, tudo o que me dizia eram arquiteturas de seu pensamento que, agora sei, evoluiam a uma só direção: seus interesses. Muito obrigado, mas lhe devolvo na mesma proporção com que elas hoje causam em mim: ___________.

6. Não terá também meus atentos e concordantes ouvidos às suas reivindicações e opiniões sobre o aborto, o divórcio, a liberação sexual e questões que o feminismo insiste em dizer tomarem decisões machistas, mas que, ao final, você, ex-dama-de-minha-noite, acaba se esquecendo e agindo do mesmo jeito. Poupe-me da razão feminista ultrapassada que você vomita em mesas de bar, jantares e encontros, mas que não a tem.

7. Entenda, ex-docinho-de-coco: estou cansado, muito cansado, estou mesmo muito, mais muito, muito, muitíssimo cansado de pensar se vale a pena ou não nosso andrajoso romance, se devo reconsiderar por mais tempo ainda sua traição, seu gozo com outro, suas pernas arqueadas esperando o sexo do outro, na tentativa profícua de esquecê-la. Meu nojo e asco atingiram lugares banais, tornaram-se ódio.

8. Assim, competente e versátil que você é, ex-mulher-de-meus-filhos, desempenhe também este papel: suma do meu caminho sem deixar rastro, vá cuidar de sua famigerada, miserável e rasa existência, distante e infeliz substância aquosa que você, nesse instante, deve ter se tornado.

quarta-feira, 15 de julho de 2009

O olhar


Olhou e pensou ter visto uma maçã de outono. Mais uma vez e percebeu que era um pássaro, solto, se esvaindo pela amplidão. Olhar de menina perdida, na véspera do chegar. Chão de pedras, mato verde, bambuzal dançando adeus. Pensou ter visto um carro de boi, fumaça-lenha, colcha de retalhos, a mãe. Ou um imenso estender-se de retas paralelas. Olhou com esmero um esqueleto de conchas coladas. Um enorme amontoado de sorrisos limpos, reluzentes, desses que aumentam o dia. De longe, parecia uma árvore carregada de pontos coloridos. Depois, viu almofadas bordadas com fios de ouro, desenho de um imenso dormitório estampado. Sonhou ter visto um pedaço de madeira podre, desgastada pela chuva. Olhou de novo e viu cabeças enfeitadas com pequenos poemas. Enfim, eram fotografias.

sexta-feira, 10 de julho de 2009

Dia de esvursco

Era dia de esvursco. Sua peixluna esquerda apresentava vários entortóicos na região lombar. Levantou-se de catapatá para cozer sua cachobeça. Antes, contudo, caminhou até a janela, onde alguns passaplumas cheiravam diversas quantidades de violecácias, na tentativa frustrada de receber alguns raios de luscosol. Não os obtendo, pernaficou em velocidade para bicudar um amarcafé, pois assim agragostava, sem açucadoce.

Entorpecido por uma noite daquelas sononaoquechato, rubrou-se pela casa, ora pelo brilho amarelado da lampaluz, ora pelo ébano do escurisquisito quarto de hóspedes. Fumou um pesafronte, sorveu um tácanopeito que havia escambado por elogios de página proferidos pelo feitorpinga da esquina e mosquiteava pelos cômodos. Aturdido pelo dia-adia-dia-adia, adiantou-se e foi para aquele que era o local de sua imagifritação.

O autor, peidoicamente, queria se sentar. Entrepouco, nenhuma cabuzamfa caberia naquele quixitim de espaço. Aprumou-se como um aliterreinos de grande castelo e curvou-se logo em ali de pronto. E na primogênita linha de sua ainda portenhosa, mas narrainativa, rabiscou: “Me enchi dessa merdopopéia. Avontade-se para tomar no cúrvusco”, bradou ratatopeicamente.

terça-feira, 7 de julho de 2009

De caju


você é assim, como caju pra mim.
tecido forte.
mas, como eu em você,
em minha terra, o caju não tem sorte.

os veleiros que passam
rasgam o vento.
eu, já sentado,
apenas deito e penso

o conforto da saudade
não me basta.
em pedra, água e mato
ela se transforma, vasta!

domingo, 5 de julho de 2009

Sobre a passagem de Chico Buarque pela Flip


certos homens são capazes de produzir ouro pelas ventas
alguns o tornam algo de inquestionável
nada é comparado ao homem das palavras
mas outros homens/mulheres
não se sentem à vontade com sua presença
se batem, enquanto o homem unânime
com outros menos humanos
debate - (e se debatem)
e os outros se debatendo
pelas vielas e caminhos que este pisou
(devem tirar fotos das pedras por onde andou o homem das letras)

testam sua agilidade em desviar de corpos
intentam alcançar o regozijo do toque
ou um olhar de soslaio que se funde em epifania
adoram seus trejeitos
sua voz fanha
e inimaginariam seu fim
pensariam um castigo da ordem do divino
e tal

de súbito
assim como suas miudezas desconhecidas
o homem sem palavras
com cárie no orgulho
deve pensar em sua cabeça-biblioteca
"como são tolos estes homens"
e enquanto quieto
solta ouro pelas ventas

sexta-feira, 3 de julho de 2009

Bom dia

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Sem rodeios


A menina entra. O prato cheio. O corpo vazio. A colher prateada. O cansaço do dia. A mesa quadrada. Os cabelos ensebados. O chão batido. As pernas triangulando. A parede sólida. Os braços arqueados. A panela miúda. O estômago grão. A comida caçada. A fronte curvada. A chuva densa. A face amassada. O teto puído. O peito atordoado. O quarto umedecido. Os pés descalços. O ar denso. As costas arrepiadas. A procura desesperada. A mão quietada. As folhas paralisadas. Os olhos fixos. O homem seco estendido.

quarta-feira, 1 de julho de 2009

O que deveria ser uma errata



Quando, de início, corrigido pela minha própria mulher acerca de um erro gramatical no meu texto de estreia nesse blog, vi minha honra de macho dominante e minha reputação de jornalista serem colocados à prova. Natimorto era a palavra em questão. O contexto: quando me referia ao portal ‘O Binóculo’, no ar durante seis anos e, desde o fim do ano passado, presente apenas em uma página de conteúdo congelado, desatualizado, retrato de uma paisagem morta.

O argumento dela: “natimorto diz respeito àquele que já nasceu morto, o que, no caso, em nada tem a ver com o 'O Binóculo', que só se desgarrou do primeiro plano após longo tempo de vida”.

Deveras. Natimorto é uma denominação dada ao nascituro (sinônimo de feto) que morreu dentro do útero ou durante o parto, ou seja, quando ocorre óbito fetal. Óbito fetal é a morte de um produto da concepção ocorrida antes da expulsão ou de sua extração completa do corpo materno, independentemente da duração da gestação.

Todavia, lembro que, segundo o Conselho Federal de Medicina, órgão máximo da medicina brasileira, o anencéfalo é considerado natimorto cerebral. A anencefalia consiste em malformação rara do tubo neural, caracterizada pela ausência parcial do encéfalo e da calota craniana, proveniente de defeito de fechamento do tubo neural durante a formação embrionária. Como não tem cérebro, já seria um natimorto cerebral.

Está aí, então, o gancho que me livra da gafe. Cuspir no prato que comi e na ausência de massa encefálica de meus colegas jornalistas (tão desprestigiados nos últimos tempos) para manter a ordem e a dignidade em casa.