domingo, 19 de setembro de 2010

O exílio

Ele entrou, desvairadamente, pela porta atravessando o vão que ainda recebia os primeiros toques de tinta dados por ela que não percebeu o movimento de primeira, mas que logo compreendeu que ela havia guardado aquele vestido novo que ele sempre a deixara usar dentro dos territórios da casa que ambos julgavam ser dos dois pelo resto de suas juventudes, jovialidades e maturidades ainda que longínquas. Em momentos solitários de ambos costumavam roer as unhas que agora ele não percebia pelos dedos sujos de cores dela que àquela hora já deveria estar tecendo o café, mas que não o fazia pois haveria de fazê-lo quando ele assim o chegasse feito louco e, de fato, foi isto que sucedeu.

Se esgueirava feito fumaça entre contornos tortos dos olhos dele que miravam ela feito harpia em busca da presa e que, facilmente, não sentiria falta do odor característico do líquido negro que escorre pelo bule na cozinha e que ele ainda não percebeu surgindo, posto que o cheiro rondasse a copa e não tinha pernas para alcançar, por enquanto, o outro ambiente. Acomodou-se vagarosamente no canapé com o cuidado equivalente a uma pena, mas que ela, traiçoeira que só, fingia não notar quando ele rubrou sua camisa nos respingos do teto que pintavam de forma estranha e escandalosa o encosto das costas, contudo sendo ele sempre distraído também não perceberia suas risadas traquinas, mesmo que por pouco tempo, pois respingara também seu rosto no dito ato. Ao sentir o frio pelas costas, imaginou água e de súbito se pôs de pé em ação envergonhada, não menos que ela tentando esconder também suas manchas atrás dos cabelos cobre encaracolados.

Ela, do altar de sua escada, fingiu-se desavisada e pouco interessada embora bastante nos atos que ele executava enquanto se deliciava em vê-la entre ele e seu par de sapatos que estavam exatos de quando se foi. Que ela executava com pouca perfeição se importava, mas que sabia que ele, ao vê-la no trato delicado com as paredes dos dois, não se molestaria, senão que gozo, ao ver declinar lentamente cada degrau de sua recente obra artística que agora ele percebia na esquina do teto, ainda que discretas, de suas iniciais que existiam há pouco graças às pinceladas perfeitas de sua grafia.

Ainda um tanto desconcertados pela situação, esgueiravam-se um do outro reatando a velha ocasião que constantemente o acometia durante os anos todos que ela o aguardava na esperança manca de um dia voltarem a se ver novamente tornando este o instante mais casual de todos. Miraram-se inicialmente pelos olhos, correndo com os mesmos pelo corpo um do outro negligenciando o tempo que havia consumido, ainda que de forma branda, as formas hoje nem tanto lineares ou mesmo interessantes para que despertassem em qualquer transeunte um desejo fetiche de possuir suas carnes mas que em seus casos eram mais lindos pois carregavam suas histórias.

Colheu-a em seus braços, lançou-se pelos olhos dele, torneou sua cintura, roçou sua pele lisa sobre a barba mal-feita, inspirou seu exalar característico, sentiu medo dele não reconhecer seu cheiro, passou os dedos por entre seus raros cabelos, largou o pincel, manchou sua camisa, não importou-se, romperam-se pela casa desafiando os espaços, arrastaram coisas pelo trajeto, voltaram a acostumar-se.

E ambos permaneceram em silêncio diante da natural falta de assunto que acomete dois quando há anos não se veem.