quinta-feira, 27 de agosto de 2009

A fantástica e inóspita razão de Aturdido da Palavra


Toda conversa carrega em si um caráter de conversão. Foi assim que Aturdido da Palavra descobriu sua vocação para escutador. Cobrava, mirradamente, para ceder seus aceirados ouvidos a um qualquer. Como não discorria, apenas orelhava seus monolocutores, desenvolveu uma fantástica e peculiar característica ao decorrer dos anos. Aturdido costurava na cabeça as estórias que ouvia e, assim, as vivia em pensamento. Singularmente, deixava de viver as suas e vivia as dos outros em sua cachola.

Certa vez, já sabedor de suas especialidades, veio a seu encontro um senhor alvo, de olhos cerrados, barba de terceiro dia e palavrear não estranho. Era sua personalidade, carnificada, materializada, em pessoa pleonasticamente. Coeso de Nascimento (pseudônimo de Aturdido) vinha cobrar de seu descuidado as estórias que não mais vivia, mas apenas escutava. Silenciosamente atencioso, o rapaz meneava a cabeça ao concordar com sua figura dramática e apenas baixava os olhos quando do contrário.

De início, ainda sem entender bem o que acontecia, Aturdido fez jus a seu nome. Posteriormente, acreditava ser esquizofrenia. Finalmente, mais aceitou que descobriu que era mesmo sua personalidade num lampejo de esquecimento. Ela, curvada pelas estórias de outros, começava miudamente a desaparecer – posto que personalidade sem estória é como pássaro sem asas, pedra sem chão, árvore sem terra, no popular, pão sem manteiga. Coeso sempre orientava seu “cavalo” para tomar cuidado.

- Aturdido, Aturdido, dia desses você vira ex-Aturdido.

Passaram-se anos e nada de estoriar por aí. Era sempre aquele tecer pelo ouvido os dizeres dos outros. Rendava seus pensamentos com calor de jágora!. Construía uma única história com diversos retalhos de imagens-cuca. No entanto, iniciou-se um acontecimento inusitado. A cada lance de invenção, inaugurava-se um pequeno buraco em seu corpo que vazava para o outro lado, como se quem visse enxergasse uma pessoa vazada. De pronto, não deu muita importância. Quase não usava seu miúdo esquerdo do pé mesmo. Nem a ponta de seu nariz, que começava a se borrar feito esfumato pelo rosto. E o caso ainda havia de acumular-se. O cérebro enviava a informação para o músculo. Este, por sua vez, sendo interrompido no caminho, não a completava, causando em seu corpo um intenso não-se-saber-se de movimentos descompassados. Era como se a cada tentativa de estender a mão produzisse uma dança estranha, curiosa, que reverberava por todo seu corpo, causando uma impressão jocosa em quem o assistisse.

No entanto, apesar do fato, Aturdido não estancava sua inércia. Continuava a não cursar sua individualidade. Estendiam-se suas não-estórias. Já velho, foi penosamente vítima do olvido, malefício corriqueiro às rugas. Assim, suas rendas começaram a se esfarinhar pela cabeça, cada canto do oco se escurecia apagando uma a uma as candeias de sua imaginação. Todo romance guardado em seu côco era subvertido, reestruturado, finalizado e, por fim, esquecido. E a cada rodada destas, agravadamente, Aturdido ia, miopimente, embaçando-se em direção ao nada. Verdugo, o tempo calhou de tomar seus dias, consumindo-o como um buraco-negro, degenerando-o como uma estrela. Escafedendo-o por completo.

Anos correram, pessoas, novas casas se erguiam a cada ruína, velhos, cachorros, crianças com mania de super-homem, cadeiras de balanço, silêncios noturnos, brigas, incoerências, invenções, imaginações e, ao final, todos sabiam da história do homem que desapareceu, tornando esta, a fábula de Aturdido da Palavra.

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